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A faculdade de filosofia


Confesso que deveria ir mais a Belo Horizonte do que vou. Foi lá que passei meus primeiros 23 anos de idade. Mas confesso também que a Belo Horizonte que ainda existe dentro de mim é uma ilusão. Uma cidade cheia de árvores e amintinhas, os bichinhos que receberam o nome do prefeito Amintas de Barros.


A Belo Horizonte dos meus sonhos ainda é aquela do Sobrado do Torra, aonde ia com a minha mãe comprar, todos os anos, um Vulcabrás novo. É a cidade das Estâncias Califórnia, aonde ia com o meu pai todo mês de dezembro escolher a mais bonita cesta de Natal do mundo. É a cidade do Abdalla, que vendia calça americana falsificada e bem barata. O Abdalla, dizia o slogan, era fogo na roupa!


A Belo Horizonte dos meus sonhos é aquela das lojas Floriano Nogueira da Gama, onde namorávamos todos aqueles eletrodomésticos lançados pela GE. É a cidade do Mundo Colegial, onde comprávamos o uniforme escolar e o tênis Bamba para fazer educação física. É a cidade da Bemoreira, do bar Grapette, da padaria Savassi, do Armazém Colombo, do posto Fraternia e dos supermercados Serv-Bem.


A Belo Horizonte dos meus sonhos não existe mais. É uma cidade imaginária onde pombos-correios sobrevoavam a Igreja do Carmo procurando a minha casa. É a cidade palco das batalhas de mamona que travávamos em plena BR-3. É a cidade que ainda abriga um campinho de terra na Rua Grão-Mogol, de partidas inesquecíveis.


A Belo Horizonte a que quero ir e não vou é aquela da Gruta Metrópole, da Cantina do Lucas, da Churrascaria Camponesa. É a cidade do Ted's, onde se comia o melhor dogão do pedaço, a cidade da Livraria Van Damme, onde namorava aqueles livros de arte tão caros pro meu bolso.


A Belo Horizonte a que quase nunca vou é aquela cidade onde os trólebus subiam e desciam a Rua da Bahia. E eram esses trólebus que me levavam todos os dias à Rua Carangola número 288, o endereço da Faculdade de Filosofia da UFMG. Nas poucas vezes em que voltei a Belo Horizonte nunca mais passei na porta daquele prédio onde durante três anos estudei jornalismo.


Confesso que cada vez que chego a essa cidade ainda procuro a banca de jornal do 'seu' Benito, ainda procuro a Confeitaria Bosch, na ilusão de encontrar ali aquele sanduíche de pernil que já vinha com umas gotinhas de limão por cima. Ainda procuro a Bemoreira, a Guanabara e uma loja na Avenida Afonso Pena que se chamava Pros Cocos. Mas confesso que, na Faculdade de Filosofia, nunca mais passei na porta.


Foi nessa manhã chuvosa de nuvens cinza boiando no céu de São Paulo que me chegou às mãos um livro da jornalista Clara Arreguy chamado simplesmente "Fafich". De cara ela dá a ficha: "A Fafich abrigava dos esquerdistas metidos a revolucionários aos alternativos de todos os matizes, naturalistas, vegetarianos, macrobióticos, gente que partia dali para comunidades na roça, gente que fazia terapia de grupo, 'gestalt terapia', homeopatia, acupuntura, antiginástica. Mas não era só isso. Pessoas 'normais' também estavam no cardápio. Gente que vivia de mesada e tinha até certo constrangimento de chegar para a aula de carrão, em contraste com a dureza generalizada".


Não é preciso dizer muita coisa mais. Foi nesse ambiente que estudei três anos de jornalismo, numa época em que jornalismo se estudava na faculdade de filosofia. Foi ali naquele prédio que me deram régua e compasso. Que diagramei num mimeógrafo a álcool os primeiros números de um jornal chamado "Flan". Foi ali que começamos a pôr nossas idéias para funcionar. Foi ali que discutimos calorosamente os primeiros números do jornal "Opinião" e da revista "Veja".



Foi ali que começamos a sonhar, que deixamos o cabelo crescer, que tivemos coragem de vestir o primeiro tamanco sueco e a primeira camiseta manchada com água sanitária. Foi ali que usamos a primeira bolsa de couro de bode cheia de livros proibidos pelo regime vigente. Foi ali que aprendi o que era lauda, decupagem, colorbar, caixa-alta, caixa-baixa e deadline.


Confesso que da próxima vez que for a Belo Horizonte vou passar em frente ao número 288 da Rua Carangola, nem que seja só pra dar uma espiada. Mesmo sabendo que aquela Faculdade de Filosofia não há mais. É apenas um livro lido e guardado na estante. E como dói.


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