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Futebol, Superstição e Cachaça





Independência


Por volta de 1950, quando se aproximava o 4º Mundial de Seleções patrocinado pela FIFA, os belo-horizontinhos se agitaram para serem incluídos na festa, e a prefeitura do vigente prefeito, Otacílio Negrão de Lima, doou quase todo o orçamento necessário para erguer um estádio digno de sede do Mundial.


Após dois meses do início da construção, a parte de terraplanagem já estava pronta, e nas vésperas da Copa do Mundo o estádio foi concluído e finalmente aberto ao público em 25 de junho de 1950, quando Iugoslávia e Suíça se enfrentaram. Seja por se tratar de um palco de emocionantes partidas ou ainda pelos causos de toda ordem que o cercam, o Independência começou a colecionar histórias.

Quando o estádio ainda estava sendo construído, um dos muitos pedreiros envolvidos, após um almoço que consistiu de maciças doses de cachaça, resolveu, com o ânimo renovado pela embriaguez, retomar o trabalho. Tomou seu trator com alegria e, dirigindo em alta velocidade rumo a um barranco, conseguiu capotar o veículo, morrendo esmagado por ele. Episódios como esse marcaram as obras.


Embora outros dois jogos da Copa do Mundo tenham ocorrido no estádio (além do de 25 de junho, a goleada do Uruguai, futuro campeão, em cima da Bolívia), o confronto entre ingleses e norte-americanos é o mais relembrado. Os ingleses, por muitos já tidos como inquestionáveis vencedores da partida, tomaram de 1 a 0 - uma zebra inesperada da história do futebol. Um menino muito esperto e ex-jogador do América e Sete de Setembro, Waldyr Lellis, o Amarelinho, conta que já estava nos arredores do estádio enquanto os ianques ferravam os britânicos, tomando conta dos carros que paravam nos estacionamentos adjacentes: "Faturei 2.400 cruzeiros!"

Fenômenos bizarros, com matizes supersticiosos, também surgiam no estádio. Ao artilheiro cruzeirense Elmo, com futuro promissor, foi dito, após exame médico, que seu coração localizava-se no lado direito da caixa torácica. No Independência, a notícia ganhou magnitude cada vez maior. Em pouco tempo, ouvia-se dizer: "Pena que o Elmo não vai poder continuar a jogar, coitado. Descobriu que tem dois corações. É perigoso para ele!"


Todos os times em um estádio de emoções


Os tempos eram mais tranqüilos, confessa Amarelinho. Além do convívio relativamente harmonioso entre jogadores e carneiros aparadores de grama, os torcedores também se misturavam no estádio: uma interação que não resultava em pancadarias desenfreadas. Roberto de Castro Pereira, jogador americano do juvenil de 54, lembra que não havia divisões quaisquer entre as torcidas, tampouco havia grades que impedissem o acesso do torcedor ao campo. "Tinha-se, no máximo, um alambradozinho, feito com canos, colocado à beira do muro de três metros que separava a arquibancada do campo. Os torcedores sentavam-se em cima do muro, ficando as pernas para dentro do campo, balangando de acordo com o ritmo do jogo", diz Roberto.


As pernas balançavam com mais fervor no "clássico das multidões" de então: Atlético Mineiro X América. O Independência recebia tanta gente que mal havia lugar para assistir ao espetáculo: "Era aí que os torcedores, vendo um lugar vazio bem lá na frente e sem ter como chegar até ele, pediam aos outros, fossem americanos, atleticanos ou cruzeirenses, para que fossem os carregando até o destino desocupado". Tal como as enormes bandeiras desdobradas pelas torcidas organizadas, os torcedores eram conduzidos pelos demais, num ritual harmônico hoje impensável.


Se Galo e América eram os grandes protagonistas, "o Cruzeiro", lembra Amarelinho, "era a terceira força". E fosse para falar de uma quarta força, lá vinha o Sete de Setembro, sem perder a pose, defendida fervorosamente pelo treinador à frente do time no final da década de 1950, o implacável Dorival Knippel, mais conhecido como Yustrich, devido à sua semelhança com o Juan Elias Yustrich, goleiro argentino do Boca Juniors. Bastava ele pisar no campo do Independência para que a torcida, insandecida, começasse a gritar: "ô Zé Mingau! " Amarelinho conta que o apelido devia-se a um religioso hábito de Yustrich: alimentar seus jogadores, toda manhã, com um mingau mágico por ele preparado.


No Independência daqueles anos a atmosfera, embora amena, não deixava de contar com seus lances mais apimentados. Certa vez, em fins de 1958, o goleiro Jardel, o Cavaleiro Negro do América, dividindo a bola com o zagueiro Luizinho, do Atlético, levou deste uma joelhada tão violenta que teve o intestino perfurado. Ao que parece, o próprio Luizinho não tinha noção da sua força colossal. Recebendo um passe praticamente fadado ao sucesso, o zagueiro teve a infelicidade de atingir a trave. Ainda assim, tratou-se de um lance digno de atenção: a bola ricocheteiou com tamanho impacto que voltou até o meio de campo. Comentando o lance, o hercúleo Luizinho solta: "Uai, eu nem achei que foi forte assim. Meu pé tá machucado, nem tô sentindo ele direito, sabe? Um botijão de gás caiu nele ontem..."


Infelizmente, nem todas as figuras que conferiam ao Independência seu singular sopro de vida tinham a fantástica resistência física do zagueiro Luizinho. Walter Javali, outro dos expoentes da talentosa safra que iluminou o Sete de Setembro na década de 50, virou funcionário do clube após encerrar a carreira futebolística. Contratado por Raimundo Sampaio, exercia diversas funções dentro do Independência. Certa feita, consertando um dos refletores em dia de jogo, foi vítima de um choque tão brutal que arrancou-lhe um braço, impossibilitando o sonho de permanecer trabalhando no campo que antes tão calorosamente o acolhera.


A momentos trágicos contrapunham-se episódios de total peraltice. Roberto lembra-se do jogador Ubaldo Miranda, também conhecido como Miquica, talento explosivo do Atlético no início dos anos 60. À época, nem todos os jogadores dedicavam-se exclusivamente ao futebol. E o espectro de atividades paralelas exercidas era variado. Amarelinho, por exemplo, era bancário. Muitos estudavam, eram funcionários públicos ou até liberais. Já Ubaldo vendia lingüíça no quintal de sua casa. Mas a paixão pela bola era coisa tão visceral que ele, vez ou outra, interceptando uma pelada disputada na vizinhança, abandonava as lingüiças e entregava-se ao manejo da redonda. Quando voltava, eis que seu cachorro, notoriamente malandro, havia comido todo o estoque do dono. Para aliviar-se do estresse causado pelo cachorro, Ubaldo, em campo, não hesitava em fazer molequices com a bola, "garrincheando", como nos conta Amarelinho, com os adversários. A torcida atleticana vibrava, ao passo que a americana rezava para que um dos seus pusesse fim às safadezas do Ubaldo, dono de um talento sobrenatural para fazer "gols espíritas", como dizia o povo, pois às vezes não se tinha idéia de como ele jogava as bolas na rede. Foi quando Roberto, já cheio da peraltice do adversário atleticano, apelou para um carrinho fulminante, levando Ubaldo, bola, grama e a bandeirinha do corner para lá dos limites do campo. O árbitro Alberto da Gama Malcher, que viera do Rio para apitar a partida, enfurecido, deu um ultimato: "Na próxima, vai todo mundo pra rua: você, o Ubaldo, a bola e a bandeirinha também!" Ubaldo Miranda não saía do jogo, mas, terminada a partida, saía do estádio como artilheiro e, como conta Amarelinho, várias foram as vezes em que o Miquica, artilheiro do Campeonato Mineiro de 1958, era conduzido pela massa até a Praça Sete, louvado por seus gols verdadeiramente fantásticos.


Complicações fisiológicas reais foram as que acometeram o zagueiro americano Fernando Fantoni, também desfavorecido, na ocasião em questão, pela antiga regra futebolística: só era permitido ao técnico realizar mudanças na escalação até os 44 minutos do primeiro tempo. Depois, sem chance. O fato é que Fantoni, por volta dos 40 minutos de uma partida, sentiu estranhas reverberações no intestino. Obstinado, quis continuar jogando. Até que as revoluções gastrointestinais se tornaram tão fortes que ele, já suando frio, comunicou sucintamente ao juiz: "Vou ao banheiro". Após aliviar-se com extrema rapidez, doido para voltar ao campo, Fantoni corre para o gramado e é surpreendido pelo juiz: "Tá louco, camarada? Já temos 11 em campo". O técnico americano, ainda incompreendendo o súbito desaparecimento de um zagueiro, não hesitou em substituí-lo, tapando o buraco. E como Fantoni, já livre do mal que o atormentava, voltou aos 44 minutos, a regra o impediu de voltar a jogar.



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